Em entrevista ao G1, cantora cita tranquilidade para preparação de 'Margem', seu novo álbum. 'Ninguém nem sabia que eu estava fazendo, não tinha pressão'.

“Pra que escrever canções?” é uma das perguntas que Adriana Calcanhotto costuma fazer aos alunos do curso sobre composição musical na Universidade de Coimbra, em Portugal.

“Você precisa ter uma real motivação para dizer alguma coisa, porque se não você está fazendo canções que já existem e aí ninguém precisa disso”, explica a cantora ao G1.

Mas os 11 anos separando o recém-lançado “Margem” e “Maré” (2008), álbum anterior da trilogia da cantora, nada têm a ver com falta de motivação. A saga do mar começou com “Maritmo”, de 1998.

No fundo, a cantora gaúcha diz ter saboreado pela primeira vez a experiência de ter tempo e tranquilidade para preparar um disco. E não é que ela estivesse parada.

Entre os projetos que lançou nesse tempo estão “O Micróbio do Samba”, o show “Loucura”, com músicas de Lupicínio Rodrigues, e a turnê “Mulher do Pau Brasil”.

“Ninguém nem sabia que eu estava fazendo, não tinha pressão”, lembra a cantora. Ela também se mostra feliz ao lançar um disco conciso. “Sempre achei que os discos de nove faixas tinha uma coisa de ‘a pessoa sabe o que está dizendo, não precisa dizer mais do que é necessário.”

Adriana fala sobre como as batidas do funk a fascinam, razão pela qual decidiu incluir um funk 150 bpm. Ela conta ainda como o processo de gravação digital interferiu neste trabalho e como tem sido a experiência de dar aulas em Portugal.

G1 – 21 anos para encerrar a sua ‘trilogia de mar’… Por que tanto tempo entre eles?

Adriana Calcanhotto – Foi o tempo que levou, na verdade. Quando eu fiz o primeiro não era uma trilogia, era um disco que fiz depois de sentir a diferença da proximidade com o mar, depois de morar em Ipanema, ir pro Jardim Botânico e voltar pra Ipanema. Dez anos depois, eu tinha novas canções que falavam sobre o mar e, enfim, neste momento eu já tinha inaugurado essa questão pra mim. Estabeleci a trilogia, mas eu nem sabia se ia completá-la ou não.

Quando eu lancei o “Maré”, começou a brotar as ideias do “Margem”, veio esse nome e eu comecei a ter ideias para as canções. A grande vantagem é que foi um disco feito com muita tranquilidade, porque ninguém nem sabia que eu tava fazendo, não tinha pressão sobretudo interna minha, não tinha prazo, não tinha expectativa, não tinha nada.

G1 – E é assim que você prefere trabalhar?

Adriana Calcanhotto – Isso não é fácil de se obter. Acho que foi uma primeira vez que consegui uma coisa assim e acho que faz diferença no som, essas camadas de tempo imprimem.

G1 – Li que você tinha a batida de ‘Margem’ e diz que ficou compondo a letra por anos. Pode explicar como funcionou isso?

Adriana Calcanhotto – “Margem”, “Lá Lá Lá”, “Ogunté” e “Meu Bonde” são canções que foram feitas assim, de propósito, compostas de maneira diferente de pegar o violão e sentar no sofá. Enquanto eu estou com o violão, estou compondo, se eu largá-lo até posso ficar com aquilo na cabeça um pouco, mas é diferente de ter um “looping” que está tocando no laptop.

Eu vou, eu volto, aquilo continua. Tem uma coisa contínua nisso, que é diferente no processo de composição, e que também me leva para caminhos melódicos, onde eu não posso chegar com o meu violão, que é limitado.

Capa do disco 'Margem' de Adriana Calcanhotto — Foto: Murilo Alvesso
Capa do disco ‘Margem’ de Adriana Calcanhotto — Foto: Murilo Alvesso

G1 – Diferentemente das outras capas, essa tem um tom crítico. Ela está relacionada a forma como você vê o homem ‘cuidando’ da natureza?

Adriana Calcanhotto – É, bem entre aspas esse cuidando, né? É uma capa sem metáfora. É uma constatação do estado dos oceanos hoje. Isso não aconteceu do dia pra noite e, enfim, não foram os esquilos que fizeram isso, fomos nós.

G1 – ‘Tua’ e ‘Era Pra Ser’ são canções suas que já tinham sido gravadas pela Maria Bethânia. Por que você escolheu gravá-las agora?

Adriana Calcanhotto – “Era Pra Ser” é uma canção bem mais perto assim no tempo, é uma canção de 2016. A outra (“Tua”) tem nem sei quantos anos. Resolvi botar nesse trabalho, porque são canções minhas e só isso justifica cantar depois que a Bethânia cantou. Eu nunca tinha cantando nenhuma das duas, passei direto pra ela e agora resolvi registrar.

G1 – ‘Meu Bonde’ é uma música que você decidiu gravar no funk com 150 BPM. Qual foi a motivação para gravá-la assim? Você costuma ouvir o funk carioca?

Adriana Calcanhotto – Eu gosto muito da batida. Acho uma coisa sensacional. O 150 é engraçado, porque eu ouvi algumas pessoas dizendo “não se fazem mais funks como antigamente”. Acho que o funk está fazendo a mesma trajetória do samba. Agora que se faz funk 150, ele não é mais funk de raiz. Tudo que acontece com o samba, tudo que acontece com as civilizações é a mesma coisa.

Agora as pessoas estão reclamando que o funk não é mais aquele, e eu, como não sou mulher de raiz, faço funk 150, porque acho engraçado isso, essa queixa de que o funk não é mais o mesmo. Todas as coisas andam pra frente, têm que andar pra frente.

G1 – Não sei se você escuta, mas pode citar o nome de algum artista do funk? Já teve vontade de ir a algum baile?

Adriana Calcanhotto – Não. Baile não, não tenho mais fôlego para ir a baile [Risos]. Eu ouço as batidas, eu gosto muito e canto funk desde que eu gravei o “Fico Assim Sem Você”.

Vejo que as pessoas ainda têm muito preconceito com funk, tanto quanto se teve preconceito com o samba, no sentido de que é música de gente preta e pobre, mas internamente já existe essa coisa de que o funk era um funk e agora se faz funk 150. É sempre o mesmo movimento.

Quando começou a tocar funk eu tive a mesma impressão, o mesmo impacto, de quando eu ouvi o samba reggae, aquela célula rítmica, sabe? É uma resolução do samba, é uma forma de samba tão interessante que eu fiquei doida. Então, eu sou muito ligada nas batidas, nas possibilidades, nas viradas, no ritmo mesmo.

G1 – Ao lançar ‘Maré’, você falou que ele era ‘mais do fundo do que da beira’. E ‘Margem’, como o nome sugere, fica mais na superfície?

Adriana Calcanhotto – É, ele é mais na margem, que no caso do mar, por causa da maré, não é fixa. É nesse lugar aí que o disco está.

Adriana Calcanhotto — Foto: Leo Aversa / Divulgação
Adriana Calcanhotto — Foto: Leo Aversa / Divulgação

G1 – Você diz que no começo da carreira ia pro estúdio com tudo pronto, sabendo exatamente o que ia fazer, mas que agora isso mudou e este espaço virou lugar de experimentação. O que você achou dessa mudança?

Adriana Calcanhotto – Achei muito boa. A democratização dos meios de produção, de gravação ajudou muito, como eu vou dizer… agora cada pessoa faz a sua coisa. Os novos artistas querem ser quem eles são e já podem ser, já começam a gravar. Você faz o seu disco no seu laptop, na sua casa. As meninas estão produzindo. É muito diferente de quando eu comecei a gravar e em um tempo relativamente curto tudo isso mudou. O mundo da produção, dos estúdios era um mundo muito masculino, agora não é mais.

G1 – Como isso interferiu neste trabalho?

Adriana Calcanhotto – O que tinha antes quando eu comecei a gravar é que ainda se gravava em fita. Ainda tinha aquele suporte… Acabou a fita, gastou a fita.

“O processo digital de gravação trouxe uma calma, sabe? Você apaga, você volta.”

Não tem mais aquela urgência, a hora do estúdio não é mais aquela fortuna, as coisas não estão só na mão dos meninos, sabe? Acalmou tudo, o que dá essa possibilidade da experimentação ser inclusive mais lúdica, mais calma, mais tranquila dentro do estúdio.

G1 – Quando você lançou ‘Maré’ você tinha músicas sobrando, que não entraram no disco. Isso também aconteceu em ‘Margem’? Você já tem música para futuros trabalhos?

Adriana Calcanhotto – Não, poderia ter, mas neste momento não tenho. Agora o meu tempo, a minha organização no tempo é diferente com as aulas em Coimbra e eu tenho composto menos do que o que eu vinha compondo antes de ir pra lá, mas eu estou super contente com disco.

Eu finalmente consegui fazer um disco de nove faixas, que era uma coisa que sempre quis e nunca tive talvez o tempo, como dessa vez…. Conseguir um disco de nove faixas significa cortar, cortar muito, cortar muita coisa.

Foi a primeira vez que eu consegui. Eu sempre achei que os discos de nove faixas tinha uma coisa de “a pessoa sabe o que está dizendo, não precisa dizer mais do que é necessário”.

G1 – Você gosta deste momento em turnê, fazendo vários shows?

Adriana Calcanhotto – (A turnê) é um momento que ajuda a compor pela inércia. Você tá sempre em função daquilo, praticamente não dá tempo das coisas da vida normais. Fica em função daquilo: passa o som, faz o show, toca no camarim. Está sempre em função daquilo e das canções, trabalhando, lapidando e aí é fatal que saíam canções novas.

Eu estou super com saudade do palco. Eu ainda não escutei os três discos, um atrás do outro, mas esse é o show em que os três vão estar juntos.

G1 – De março a maio deste ano você deu o curso ‘Como escrever canções’ na Universidade de Coimbra e você já é embaixadora de lá desde 2015. Os alunos chegam esperando que você dê uma fórmula pronta?

Adriana Calcanhotto – Meu esforço é acabar com os dogmas em relação a “preciso tocar um instrumento para compor”. Não, não precisa. Cada dia precisa menos com os softwares e todas as possibilidades existentes, inclusive fazer canções na cabeça, sem software nenhum.

Outra coisa é esse negócio da fórmula. Se você procurar na internet há milhões de fórmulas do hit, de como fazer uma canção bem feita, de como fazer uma canção de sucesso. Só que a grande coisa das canções é que a gente não sabe, ninguém sabe, porque se não não precisava dos artistas, né?

Mais do que como escrever canções é: pra que escrever canções? Você tem que ter um bom motivo para escrever canções, porque o mundo está lotado de canções. Você precisa ter uma real motivação para dizer alguma coisa, porque se não você tá fazendo canções que já existem e aí ninguém precisa disso.

É isso que eu mais trabalho com eles, apesar de que na minha aula eu trabalho desde história da canção, até coisas como estrofe, verso, refrão, tessitura, estrutura, contraste, enfim. Eu gosto muito, porque com isso eu estudo canção para poder dar aula.

G1 – Pretende continuar dando esse cursos nos próximos anos?

Adriana Calcanhotto – Ano que vem o curso já está marcado. Começa em março e vai até maio. A turnê começa em agosto e vai até acho que final de janeiro, alguma coisa assim. É uma turnê grande, porque a gente vai fazer Estados Unidos, Europa, Japão, Brasil. A partir disso, ela vai ter que terminar, porque eu tenho o curso pra dar.

G1 – ‘Nada Ficou No Lugar’ (2019) é um disco que novos artistas fazem uma releitura da sua obra. Você topou o projeto sem restrições? É uma forma de levar a sua música para novas gerações?

Adriana Calcanhotto – Tenho certeza que sim. Eu soube que tinham pessoas que nem conheciam o trabalho, nem nunca tinham ouvido falar em mim e aceitaram fazer.

Eu fui perguntada “podemos fazer esse projeto?”. Falei “Desde que eu não tenha que fazer nada, porque eu já escrevi as canções: Surpreendam-me!” Achei muito legal, gostei muito.

G1 – O que você acha dessa renovação da MPB?

Adriana Calcanhotto – A canção brasileira não para e isso é uma coisa que digo para os meus alunos: A gente é muito mal acostumado, porque a gente tem muita gente de muita qualidade. Nascem gerações de gênios, sabe?

A gente comenta “Ah já ouviu o disco do Chico?”, “Ah já ouviu a canção do Caetano?”, como se fosse a coisa mais normal. Não é a coisa mais normal. É um privilégio inacreditável. Isso é uma coisa que a gente precisa agradecer todos os dias e dar muito valor, tanto as novas, como as novíssimas gerações. A potência da música da brasileira é inacreditável.