Em prosa, os recentes sucessos do Flamengo já foram cantados. Até demais, tal o entusiasmo com que nossos escribas se referem a (como disse um deles) “paixão transbordante, euforia desatada e… pitadas de estupefação”, com as quais a orgulhosa torcida rubro-negra comemorou dois campeonatos ganhos em menos de 24 horas. Agora, só faltam os cantos em verso, ou melhor, em letra de música.

Ao contrário do que se pensa, a música popular brasileira não se tem dedicado tanto ao futebol como era de esperar num país em que samba e futebol confundem-se com a própria identidade nacional. Mas, volta e meia, inspirados em dias como os de hoje, nossos compositores entram em campo.

O Flamengo parece ser a musa primeira nessa história. Seu time caminhava para ganhar o Campeonato Carioca de 1920, quando Paulo Magalhães, pianista, romancista, teatrólogo, na empolgação de seus vinte anos, compôs a marcha que um ano depois a diretoria do clube oficializaria: “Flamengo, Flamengo, tua glória é lutar/Flamengo, Flamengo, campeão de terra e mar”. Vivia-se a época em que o remo ainda era um esporte muito popular. Para uns poucos, mais que o futebol.

O tempo levaria os torcedores do Flamengo a adotarem outra marcha, música e letra de Lamartine Babo, como seu verdadeiro hino. Da iniciativa de Paulo Magalhães, restaria apenas a lembrança daqueles dois primeiros versos que, como lema, brado, exclamação, funcionavam mais do que tudo o que as duas quadras seguintes pretendiam exaltar.

A canção popular jamais chegou a atingir o coração do torcedor com a força de um hino. Parece que o pioneiro, no caso, foi o genial Pixinguinha, comemorando com seu “1 a 0” o gol de Friedenreich que deu à seleção brasileira o título de campeã sul-americana de 1919. Era um choro e –– como deve ser –– instrumental. Décadas depois, uma letra foi acrescentada à música de Pixinguinha: “É a bola, é a bola, é a bola, é a bola, é o gol/Numa jogada emocionante, nosso time venceu por 1 a 0/E a torcida vibrou”. Há quem goste, mas fico com Paulinho de Viola: letra, por melhor que seja, sempre engessa o choro.

Canção, mesmo, quase sempre samba, tem sido feita com qualidade por alguns de nossos melhores compositores. Sobre futebol ou apenas citando o futebol. Não muitas, é fato, mas com apelo o bastante para permanecer. Aquela de Miguel Gustavo (“Noventa milhões em ação/Pra frente, Brasil, do meu coração/Todos juntos vamos/Pra frente Brasil, salve a seleção!”) vai fazer 50 anos e, embora não se possa dissociá-la dos tempos de ditadura, ela continua sendo ouvida. A população cresceu, o país mudou, a seleção também, virou tetra e já é penta, mas o hino do tri não sai de moda.

Tratando-se de Flamengo, estranho que Ary Barroso tenha feito tanta música, uma para o Rio, outra para sua Minas, um punhado para a Bahia, uma obra-prima para o Brasil inteiro e nada para o clube do coração. Outro rubro-negro, de estilo muito diferente do de Ary, foi musicalmente mais fiel ao clube dos dois: Wilson Batista, a mais perfeita versão boêmia e malandra dos incontáveis filhos da “nação rubro-negra”.

Wilson e dois parceiros (ele estava sempre acompanhado de co-autores, nem todos autênticos) assinam o muito conhecido “Samba rubro-negro”, de 1955. Nele, a escalação de alguns jogadores que então vestiam a camisa do time perto de se tornar, pela segunda vez, tricampeão carioca: “O mais querido tem Rubens, Dequinha e Pavão/Eu vou rezar pra São Jorge/Pro Mengo ser campeão…” Esclareça-se que a menção a Pavão era mais uma rima que uma solução, pois o beque estrompa que fazia zaga com Tomires estava longe de jogar a mesma bola redonda de Rubens e Dequinha.

O “Samba Rubro-negro” realmente ficou. Em 1979, ano de mais um título carioca do Flamengo, João Nogueira, outro movido pela paixão, atualizou a letra de Wilson e parceiros: “O mais querido tem Zico, Adílio e Adão/Eu vou rezar pra São Jorge/Pro Mengo ser campeão…” Desta feita, três autênticos craques e não apenas uma rima.

Wilson Batista era Flamengo mesmo quando fazia samba sobre os “inimigos”. Foi para o carnaval de 1946 que, com outro parceiro, cantou à sua maneira o título invicto recém-conquistado pelo Vasco: “Vamos lá que hoje é de graça/No boteco do José/Entra homem, entra menino, entra velho, entra mulher/É só dizer que é vascaíno e que é amigo do Lelé”. O flamenguista Wilson Batista mexia assim com todos os vascaínos, que tinham em Lelé o seu ídolo e comemoravam as vitórias soltando “foguete até de madrugada”, cantando “o fado e bebendo champanhe”. No fim, o José ia à falência.

Não há certeza de que seja do mesmo Wilson a paródia de “Bonde São Januário”, samba para o carnaval de 1941, seu com outro rubro-negro, Ataulfo Alves, este um parceiro de verdade. O original, por ser uma declaração de amor ao trabalho, parece-se mais com Ataulfo do que com Wilson: “Quem trabalha é que tem razão/Eu digo e não tenho medo de errar/O bonde São Januário/Leva mais um operário/Sou eu que vou trabalhar…” Mas a paródia, sendo ou não dele, é tipicamente Wilson Batista: “… O bonde São Januário/Leva um português otário/Pra ver o Vasco apanhar”.

Prosa esgotada, que venham os novos versos.