Não somente pela pisada mais firme de Arnaldo Antunes no terreirão do samba, gênero até então eventual no cancioneiro do compositor paulista, o álbum RSTUVXZ (Rosa Celeste / Pomm_elo) deve ser celebrado também, e sobretudo, por repor a obra autoral do artista nos trilhos da inspiração. No último disco de músicas inéditas do ex-Titãs, Já é (2015), produzido por Alexandre Kassin, Antunes mostrou claros sinais de desgaste como compositor.

Gravado em março deste ano de 2018 e disponível no mercado fonográfico a partir de hoje, 25 de maio, o álbum RSTUVXZ mostra que o artista já está curado da anemia criativa. Como já amplamente anunciado na mídia, RSTUVXZ é disco que se alimenta de afinidades e contrastes entre rock e samba. Mas não se trata de disco de fusões ou de samba-rock, ainda que Serenata de domingo (Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte) beba do black samba-rock Rio de Jorge Ben Jor, quase evocando as diluições profanas de Bebeto, devoto de Jorge.

Capa do álbum 'RSTUVXZ', de Arnaldo Antunes (Foto: Marcia Xavier)
Capa do álbum ‘RSTUVXZ’, de Arnaldo Antunes (Foto: Marcia Xavier)

Na maioria das 13 faixas, Arnaldo Antunes separa sambas e rocks no disco em alternância que pauta sobretudo a primeira metade de RSTUVXZ. Mesmo que a percussão formatada pelo produtor Curumin na introdução de Se precavê sugira batucada típica do samba nos primeiros segundos da faixa, o que se ouve na sequência é inédito rock nervoso, composto por Arnaldo em parceria com Marcelo Fromer (1961 – 2001) – guitarrista da banda Titãs que saiu de cena há 17 anos – e gravado em RSTUVXZ com a vertigem do punk.

Nessa primeira metade do disco, o artista delimita bem as fronteiras que separam o que é rock e o que é samba, cujo gênero historicamente e gramaticalmente masculino é invertido por Arnaldo na letra feminina de A samba (Arnaldo Antunes). Contudo, é justamente quando essas fronteiras são balançadas (e a alternância fica menos linear) que o disco soa mais interessante e menos previsível, embora, nesse início quase ortodoxo, o compositor entre com suingue na roda do samba (do Recônvavo) baiano em Só amanhã (Arnaldo Antunes) – com direito aos vocais de Anelis Assumpção e Liniker, evocativo das presenças femininas nessa roda – e consiga, através do parceiro melodista Cezar Mendes, emular com certa bossa a atmosfera clássica de um samba da Velha Guarda em Também pede bis.

Arnaldo Antunes (Foto: Divulgação / Marcia Xavier)
Arnaldo Antunes (Foto: Divulgação / Marcia Xavier)

O artista embaralha as cartas do jogo na gravação de Céu contra muro, inédita parceria com o ex-Titãs Paulo Miklos tirada do baú. Céu contra o muro é canção climática que deveria ser um rock na disposição alternada do repertório do álbum RSTUVXZ. Mas que soa mesmo como canção de vibe roqueira amplificada pelo toque da guitarra de Fernando Catatau. Antes, alocada como a sétima faixa do álbum, a gravação de Quero você (Arnaldo Antunes e Brás Antunes) já tinha abalado as estruturas mais sólidas da primeira parte do disco ao soar como um indie samba.

Mesmo quando o território é demarcado com mais precisão, as aparências podem enganar. Única composição já previamente lançada dentre as 13 músicas do disco, tendo sido apresentada há oito anos em álbum de Marcelo Jeneci, Pense duas vezes antes de esquecer (Arnaldo Antunes, Marcelo Jeneci e Ortinho, 2010) é abordada por Arnaldo com todo o peso do rock, aumentado por guitarras incandescentes, mas bem poderia cair na cadência bonita do samba.

Arnaldo Antunes  (Foto: Divulgação / Marcia Xavier)
Arnaldo Antunes (Foto: Divulgação / Marcia Xavier)

Esse samba plural e de muitos Brasis é levado por Arnaldo para a Bahia na pálida estilização do samba-reggae feita em De trem, de carro ou a pé (Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown, Marisa Monte, Pedro Baby e Pretinho da Serrinha) e também no balanço que conduz Desistiu de mim (Arnaldo Antunes, Carminho e Cezar Mendes), samba pautado pela melodia do baiano Cezar Mendes (irmão de Roberto Mendes e, como ele, nascido em Santo Amaro da Purificação).

No terreno do rock, Arnaldo joga bem com as palavras na armadura concreta de Eu todo mundo (Arnaldo Antunes e Brás Antunes), mas pesa a mão no jogo verbal menos engenhoso que torna enfadonho o rock Medo de ser (Arnaldo Antunes).

No fim, o acalanto tribalista Orvalhinho do mar – parceria do artista com Marcia Xavier que poderia vir assinada com Marisa Monte e/ou com Carlinhos Brown – se situa fora da fronteira do rock e do samba, desbravando território que pode ser futuramente explorado por Arnaldo Antunes, compositor que, como mostra o álbum RSTUVXZ, ora se apresenta com o vigor de outrora. (Cotação: * * * *)