Mesmo que não tivesse sido a compositora extraordinária que foi desde que fez a primeira música em 1934, assinando o partido alto Tiê com Mestre Fuleiro (1912 – 1997) e Hélio dos Santos (1917 – 2007), a carioca Yvonne da Silva Lara (13 de abril de 1922 – 16 de abril de 2018) já merecia lugar de honra na galeria imortal do samba pelo pioneirismo. Contudo, Ivone sai de cena aos 96 anos – e não aos 97 anos, pois a mãe de Ivone aumentou oficialmente a idade da filha em um ano para permitir o ingresso da menina em colégio interno em 1932 – como uma pioneira na luta pela imposição das mulheres no terreirão do samba.

Basta dizer que, em 1965, Ivone foi admitida na ala de compositores da escola Império Serrano – então uma das quatro grandes do Carnaval do Rio de Janeiro ao lado das igualmente tradicionais Mangueira, Portela e Salgueiro – e pôs a assinatura dela no aclamado samba–enredo Os cinco bailes da história do Rio (Ivone Lara, Silas de Oliveira e Bacalhau, 1965). Ivone não foi a primeira mulher a abrir essa ala (proeza que coube a Carmelita Brasil em 1959, na Unidos da Ponte), mas foi a primeira a se destacar nacionalmente nesse terreiro historicamente masculino.

Mesmo assim, o mundo machista do samba nem sempre lhe abriu as portas. Basta dizer que nada menos de 40 anos separam a composição de Tiê da primeira gravação do partido alto, feita em 1974 no álbum coletivo Quem samba, fica? Fica (EMI-Odeon). A partir deste ano de 1974, Ivone começou a se impor como compositora, embora já tivesse feito a primeira gravação em disco em 1970. Foi quando virou definitivamente Dona Ivone Lara, incorporando ao nome artístico um prefixo que simbolizava a experiência que já trazia na bagagem.

Com o fiel parceiro Délcio Carvalho (1939 – 2013), autor de letras pautadas por lirismo condizente com a delicadeza das melodias de Ivone, a compositora construiu obra carregada de melancolia e esperança que fez com que Ivone se tornasse um símbolo de nobreza no reino do samba. O primeiro sucesso da dupla foi Alvorecer, gravado pela então ascendente cantora Clara Nunes (1942 – 1983) naquele ano de 1974, emblemático para a carreira de Ivone.

Dois anos depois, o cantor Roberto Ribeiro (1940 – 1996) estourou com Acreditar (1976). Na sequência, dali a mais dois anos, Maria Bethânia grava em dueto com Gal Costa o samba mais popular do cancioneiro de Ivone com Délcio, Sonho meu (1978). Quarenta depois, esse samba continua vivo na memória popular.

Foi em 1978, aliás, que Ivone conseguiu a chance de gravar o primeiro álbum solo, cujo título Samba minha verdade, samba minha raiz (EMI-Odeon) já traduzia a ideologia musical da cantora e a devoção da artista ao gênero que aprendeu a cantar e a compor ainda adolescente nos terreiros da vida.

Dona Ivone Lara,  em foto da capa do álbum 'Nasci para sonhar e cantar', de 2001 (Foto: Divulgação / Silvana Marques) Dona Ivone Lara,  em foto da capa do álbum 'Nasci para sonhar e cantar', de 2001 (Foto: Divulgação / Silvana Marques)

Dona Ivone Lara, em foto da capa do álbum ‘Nasci para sonhar e cantar’, de 2001 (Foto: Divulgação / Silvana Marques)

Formada enfermeira em 1942 (profissão que lhe garantiu o sustento pré-fama e, a partir de 1977, uma aposentadoria que lhe foi útil até o fim da vida), Ivone Lara também foi assistente social, mas, a partir dos anos 1970, também conseguiu viver do samba, tendo feito shows e álbuns importantes como Sorriso de criança (EMI-Odeon, 1979), Sorriso negro (WEA, 1981) e Alegria minha gente – Serra dos meus sonhos dourados (WEA, 1982).

Nem sempre o mercado fonográfico sorriu para Ivone. Tanto que, após o álbum Ivone Lara (Som Livre, 1985), a artista ficou 12 anos sem fazer um disco. Contudo, jamais saiu de cena, levando a vida sempre a cantar, como sintetizou no título de álbum editado em 2004 pelo selo Lusáfrica. Com o avanço da idade, esse canto passou a soar como um canto de rainha, entronizada tanto pelo povo quanto pela classe artística. Como a própria criadora, a obra sensível e feminina da artista é símbolo de nobreza no reino do samba.