Prestes a fazer 88 anos, a serem completados em 23 de junho, Elza Soares teve vida punk. No mercado fonográfico a partir de sexta-feira, 18 de maio, o 33º álbum da cantora carioca, Deus é mulher (Deck), traduz a natureza punk dessa existência ao longo de 11 músicas assertivas.

Elza usa a voz para dizer o que se cala, como ressalta a capella no canto ritualístico ouvido logo após a percussão tribal que introduz O que se cala, samba de Douglas Germano que o produtor Guilherme Kastrup transformou em samba-punk com a colaboração dos coprodutores Romulo Fróes, Kiko Dinucci, Marcelo Cabral e Rodrigo Campos.

Mais do que usar a voz, Elza levanta a voz com a autoridade de mulher negra parida, sofrida e fortalecida nas vicissitudes da vida. “Exu nas escolas!”, brada repetidas vezes a negra Elza, ciente de que a vida não é recreio nem Xou da Xuxa, como ironiza, mordaz, no grito que não para no ar pesado de Exu nas escolas, tema do cancioneiro punk de Kiko Dinucci turbinado com o discurso contundente do parceiro Edgar, rapper paulistano que versa sobre desvios de merendas e outros desmandos deste país laico que parece sem Deus e sem lei.

Elza Soares (Foto: Divulgação / Daryan Dornelles)
Elza Soares (Foto: Divulgação / Daryan Dornelles)

Mesmo que o impacto do disco Deus é mulher seja naturalmente amortecido pela força ancestral que moveu o álbum anterior de Elza, A mulher do fim do mundo (2015), o atual álbum – a ser lançado em CD, LP e até em cassete – flagra a cantora com vigor renovado.

Em bom português, Deus é mulher não é A mulher do fim do mundo 2, ainda que tenha sido formatado quase pela mesma trupe. A vibe é outra. Verborrágico, Deus é mulher está mais para Kiko Dinucci enquanto A mulher do fim do mundo está mais para Romulo Fróes – e talvez não por acaso este acabou não assinando a direção artística do disco, como anunciado inicialmente pela gravadora Deck.

A presença feminina é mais notada nos créditos do repertório e da banda, capitaneada por Kastrup com Marcelo Cabral (baixo e bass synth), Rodrigo Campos (cavaquinho e guitarra), Kiko Dinucci (guitarra, sintetizador e sampler), Mariá Portugal (bateria, percussão e MPC) e Maria Beraldo (clarinete e clarone), mas não em pé de igualdade.

Só que há Elza, pendendo a balança para o lado feminino. Acima de todos, paira a entidade Elza Soares, com a boca-voz que engole, deglute e escarra tudo. “Eu vou pingar até em que já me cuspiu, viu?”, avisa em Banho, grande música de Tulipa Ruiz que sinalizou a atmosfera noise de Deus é mulher ao ser lançada em single em 20 de abril. Banho lava a alma com as vozes e as percussões maternas do Ilú Obá de Min, bloco afro formado somente por mulheres na cidade de São Paulo (SP).

Capa do álbum 'Deus é mulher', de Elza Soares (Foto: Daryan Dornelles)
Capa do álbum ‘Deus é mulher’, de Elza Soares (Foto: Daryan Dornelles)

A aura divina que envolve Elza jamais dissipa o clamor e calor carnal que abrasa no passo metaleiro do frevo que guia Eu quero comer você, composição de Romulo Fróes e Alice Coutinho. Sim, é Elza quem fica por cima em Deus é mulher.

Outra composição de Romulo Fróes e Alice Coutinho, a balada Língua solta cospe fogo na voz rouca da cantora-entidade em clima a dois adensado por cortes secos de guitarras. “Quero voz e quero o mesmo ar / Quero mesmo é incomodar”, reivindica Elza, sublinhando a imponência do discurso que pauta as letras das 11 músicas do álbum Deus é mulher.

Faixa que se insinua como samba já no toque do berimbau que a introduz, Hienas na TV (Kiko Dinucci e Clima) se vale da dialética entre sim e não para reforçar o tom assertivo do álbum. “Sim, digo sim para quem diz não e, para quem quiser ouvir, eu digo não”, afirma a cantora, jogando sagaz com as palavras. Em Deus é mulher, é Elza quem, além de estar por cima, dá a última palavra e quem ri no final dessa faixa, simulando o riso de uma hiena.

Na poética de Clareza, samba em suave esquema noise de Rodrigo Campos, Elza se mostra mansa, mas sempre no comando da voz. “Ora, cara, não me venha com esse papo sobre a natureza / Cada um inventa a natureza que melhor lhe caia”, defende no clima roqueiro de Um olhar aberto, tema da lavra feminina de Mariá Portugal. “Minha fé quem faz sou eu / Não preciso que ninguém me guie / … / O amor é um Deus que não cabe na religião”, professa a deusa-mulher, do alto da fé lapidada na vida dura vida, em Credo (Douglas Germano), samba tornado (hard) rock pelos produtores de Deus é mulher.

Detalhe da capa do single 'Deus há de ser', de Elza Soares (Foto: Reprodução)
Detalhe da capa do single ‘Deus há de ser’, de Elza Soares (Foto: Reprodução)

Com a língua afiada, solta, Elza recusa o silêncio e dá a cara a tapa nos versos altivos de Dentro de cada um (Luciano Mello e Pedro Loureiro), faixa também embasada pela percussão do Ilú Obá de Min. A mulher pode ser cada um na poética cuspida dessa música que concentra boa parte da energia feminina que se espalha pelo álbum Deus é mulher.

“A mulher sou eu”, resume Elza, acima de todas as vozes, coisas e ruídos. Mas, se a mulher é ela, “Deus é mãe”, como Elza reitera no fecho do álbum ao enfatizar verso da letra de Deus há de ser (Pedro Luís), música previamente apresentada em 4 de maio como segundo single do álbum.

Elza leva a mãe com ela e, nesse final emblemático, a deusa-mulher se conecta com a mundana mulher do fim do mundo. Todas são Elza Soares, a guerreira valente que dá a cara a tapa ao levantar a voz para dizer o que se cala neste que é, até o momento, o grande disco de 2018. (Cotação: * * * * *)