Do lado direito de quem olhasse o palco, havia uma cantora que vem ecoando o canto referencial de Gal Costa desde os anos 1990 sem deixar de reforçar a própria assinatura no cancioneiro que aborda com voz cristalina. Do lado esquerdo, havia um dos maiores cantores do Brasil. No centro do show, havia o repertório emblemático de Gal Costa, o que nunca envelhece.

Enfim apresentado na cidade do Rio de Janeiro (RJ), dentro do projeto Música das 7 do Teatro Riachuelo, o show Fruta gogoia reuniu Jussara Silveira e Renato Braz esta semana em torno desse repertório fabuloso construído por Gal ao longo de 53 anos de carreira fonográfica.

O show resultou menos solene do que o majestoso álbum lançado em junho de 2017 com recorte tradicional de 18 músicas gravadas por Gal entre 1968 e 1985. A tradição foi fruto do excessivo conservadorismo de Dori Caymmi, convidado a produzir o disco e arranjar parte dessas 18 músicas. O álbum Fruta gogoia – Uma homenagem a Gal Costa (Selo Sesc) enquadrou o repertório de Gal em moldura tradicional, adornada com cordas.

Feito com instrumental mais enxuto e com projeções de imagens relacionadas à obra Bicho Gal, da artista plástica Renata Silveira, o show jamais arriscou uma ousadia estilística, mas soou mais leve e descontraído, como testemunhado pelo publico que assistiu à estreia carioca de Fruta gogoia na última terça-feira, 22 de maio de 2018.

Renato Braz e Jussara Silveira no show 'Fruta gogoia' (Foto: Mauro Ferreira)
Renato Braz e Jussara Silveira no show ‘Fruta gogoia’ (Foto: Mauro Ferreira)

O padrão de qualidade do repertório e dos cantores foi sempre alto. O único senão do show foram eventuais inadequações – mais evidentes no palco do que no disco – de Renato Braz a esse repertório. Por mais que o cantor paulista seja tecnicamente irretocável, pareceu que Braz deixou escapar a alma desencantada que move Vapor barato (Jards Macalé e Waly Salomão, 1971) pelas águas da contracultura. Da mesma forma, faltou a Braz uma dose de sensualidade a mais para encarar as garras lânguidas de Tigresa (Caetano Veloso, 1977).

Em contrapartida, o cantor roçou o sublime ao dar voz ao Tema de amor de Gabriela (Antonio Carlos Jobim, 1983) com citação da Modinha para Gabriela (Dorival Caymmi, 1975) e com Baby (Caetano Veloso, 1968) no meio do medley. Outro ponto alto protagonizado por Braz foi quando o cantor ficou a sós no palco, com o próprio violão, e cantou O amor (Caetano Veloso, 1981, sobre versos de Vladimir Maiakovski traduzidos para o português por Ney Costa Santos). Em muitos momentos, a voz grave de Braz foi capaz de atingir profundas regiões emocionais, evocando um Brasil distante de tempos idos.

Já Jussara Silveira se mostrou, outra vez, uma grande cantora que o Brasil deveria conhecer e ouvir mais. Na voz de Jussara, Não identificado (Caetano Veloso, 1969) pareceu levitar no espaço sideral com um sentimento tão singelo quanto os dos iê-iê-iês românticos e com a mesma leveza com que a cantora fez Passarinho (Tuzé de Abreu, 1973) alçar voo.

No samba-canção Volta (Lupicínio Rodrigues, 1957), a cantora – tecnicamente mineira, mas de vivência baiana – fez o público cantar junto com ela, propiciando momento de rara interação entre artistas e plateia. Já a interpretação do bolero Folhetim (Chico Buarque, 1978) soou mais titubeante na voz da cantora, que tropeçou nos versos. Mas o número valeu pelo toque do bongo por Braz, que atuou como se fosse músico da banda do show, integrada por virtuoses como o acordeonista Toninho Ferragutti e o pianista Itamar Assiere, entre outros excelentes músicos.

Renato Braz e Jussara Silveira no show 'Fruta gogoia' (Foto: Mauro Ferreira)
Renato Braz e Jussara Silveira no show ‘Fruta gogoia’ (Foto: Mauro Ferreira)

Juntos, Renato e Jussara caíram com (alguma) graça no choro Teco-teco (Milton Villela e Pereira da Costa, 1950) e se encontraram afinados ao fim de Estrada do sol (Antonio Carlos Jobim e Dolores Duran, 1958). No bis, o dueto no samba-canção Só louco (Dorival Caymmi, 1955), conduzido pelo toque do violão de Braz, elevou novamente o show a um patamar de excelência.

Na sequência, arrematando o bis e a apresentação, a canção Sorte (Celso Fonseca e Ronaldo Bastos, 1985) deu à apresentação um ar fresco, quase pop.

Com exceção do pioneiro samba-canção Linda flor (Yayá (Ai, ioiô) (Luiz Peixoto, Marques Porto, Henrique Vogeler e Cândido Costa, 1929), gravado por Gal em álbum de 2003 mas quase nunca associado à cantora, todo o repertório do show Fruta gogoia conectou a memória afetiva do público carioca à trajetória marcante de Gal Costa no universo pop do Brasil. (Cotação: * * * *)