Nem sempre arranjadores e produtores levam o devido crédito na consolidação da obra de um compositor. É inestimável, por exemplo, a contribuição do pianista e arranjador Wagner Tiso na formatação do cancioneiro de Milton Nascimento nos anos 1970, década que narcou o início da similar parceria de Ivan Lins com o também pianista e arranjador Gilson Peranzzetta.
Essa parceria é o mote e o motor de Cumplicidade (Fina Flor), álbum gravado ao vivo no Estúdio Terê, em Teresópolis (RJ), com o registro fiel de show feito pelos dois artistas cariocas pelo Brasil ao longo de 2017.
De volta de longa temporada solo no exterior, Ivan promove Cumplicidade com Peranzzetta neste mês de agosto com shows nas cidades de São Paulo (SP) – agendado para a próxima sexta-feira, 17 de agosto, na capa Tupi or Not Tupi – e Rio de Janeiro (RJ), onde o duo se apresenta em 29 e 30 de agosto no Teatro Rival.
Sem um mínimo teor de novidade no repertório inteiramente pautado por regravações do cancioneiro de Ivan (assinado em maioria com o letrista Vitor Martins), Cumplicidade é disco reiterativo e celebrativo da afinidade musical desses dois músicos, sendo que um é também o cantor e o compositor das 13 músicas do álbum.
Em Cumplicidade, ambos estão juntos e a a sós com essa comunhão que harmoniza a voz e os teclados percussivos de Ivan com o piano acústico de Peranzzetta. Essa harmonização é feita por vezes com a recorrente influência do jazz, como evidenciado nos presentes registros de Abre alas (Ivan Lins e Vitor Martins, 1974), Antes que seja tarde (Ivan Lins e Vitor Martins, 1979) e Lembra de mim (Ivan Lins e Vitor Martins, 1995). Até a brasilidade de Lua soberana (Ivan Lins e Vitor Martins, 1992) se banha no jazz, assim como a cadência do samba-soul Madalena (Ivan Lins e Ronaldo Monteiro de Souza, 1970).
Esse toque jazzístico já soa perfeitamente natural nos toques dos músicos porque ele, o jazz, está embutido na discografia de Ivan – de forma mais ou menos explícita – desde 1975, ano do álbum, Chama acesa, que estabeleceu o começo da conexão do cantor com o pianista e arranjador.
Tal intimidade nos palcos e nos estúdios de gravação gerou até parcerias literais. A balada Love dance (1981 / 1988) e Setembro (1980) são músicas assinadas por Ivan com Peranzzetta. Levada nos vocalizes por Ivan no álbum Cumplicidade, Setembro é composição lançada pelo cantor no álbum Novo tempo (1980) e reapresentada pelo arranjador cinco anos depois no álbum solo Portal dos magos (1985).
Já o clássico internacional Love dance é a música originalmente intitulada Lembrança do álbum Daquilo que eu sei (1981) e revivida em Cumplicidade com a letra em inglês de Paul Williams propagada nos Estados Unidos a partir de 1988 (a letra original em português é de Vitor Martins).
Por ter erguido obra que embute harmonias jazzísticas, Ivan Lins é um dos compositores mais cultuados fora do Brasil. Tanto que, como revela texto publicado na edição em CD do álbum, o embrião de Cumplicidade começou a ganhar forma em 2008 em concerto feito por Ivan com Peranzzetta no teatro Konserttitalo Martinus, em Vantaa, na Finlândia.
Um número dessa apresentação finlandesa – Dinorah, Dinorah (Ivan Lins e Vitor Martins, 1977), tema de alcance planetário – fecha o disco, como faixa-bônus indicativa de que a união cúmplice de Ivan Lins e Gilson Peranzzetta já parece imune aos efeitos do tempo. (Cotação: * * * *)