Tulipa Ruiz acaba de regravar música do grupo Os Mutantes em dueto com a funkeira MC Carol. Tiê promove música cantada com Luan Santana e assinada por compositores como Rafael Castro e Adriano Cintra. Gal Costa se prepara para lançar álbum de músicas inéditas com repertório que inclui composição de Marília Mendonça, hitmaker do universo sertanejo. Enfim, está tudo junto e misturado na geleia geral musical brasileira. Desde que o samba é samba é assim, ainda que as viúvas da MPB continuem praguejando nas redes sociais contra o estouro de Pabllo Vittar, as ambições planetárias de Anitta e a popularidade irreversível do funk carioca e das ramificações do gênero.

É nesse contexto libertário, sem muros estéticos, que deve ser entendido e avaliado o funk Só os coxinhas, lançado por Marina Lima em single disponível nas plataformas digitais a partir de hoje, 23 de fevereiro de 2018, dando saborosa prévia do álbum Novas famílias, programado para chegar ao mercado fonográfico em 16 de março com distribuição da Pomm_elo. Só os coxinhas é funk mesmo! Tem os códigos e o linguajar do gênero.

Capa do single 'Só os coxinhas', de Marina Lima (Foto: Divulgação)
Capa do single ‘Só os coxinhas’, de Marina Lima (Foto: Divulgação)

O funk Só os coxinhas poderia ter sido criado e/ou gravado por Anitta, mas é uma composição assinada por Marina Lima com Antonio Cicero, retomando parceria emblemática na história do pop do Brasil. Coproduzida por João Brasil com a própria Marina, ambos no comando das programações e dos teclados, a gravação de Só os coxinhas emula o batidão com dose de eletrônica que credencia o funk a ser hit em bailes em que a trilha sonora é dominada por sucessos de Jojo Todynho e Ludmilla, entre outras estrelas do gênero tão marginalizado pelas elites. Até (e sobretudo) por isso Só os coxinhas chega em boa hora, para dar um nó no raciocínio binário de quem nunca ousou pensar ouvir Marina Lima, a “sofisticada” compositora pop de músicas como Fullgás (1984) e Virgem (1987), cantando um tema tão “popular”.

Com mordacidade, o funk alveja os coxinhas, termo usado em comentários sobre política para designar, já com ironia, gente de bom poder aquisitivo alinhada com a ideologia dos partidos de direita. “Desce agarradinho / Mexendo o umbiguinho / Você é tão safadinho / … / Só pagando cofrinho / Bem no seu quadradinho / Agora só no biquinho”, ordena Marina nos versos imperativos da letra, entremeados com o coro que reproduz o verso-título Só os coxinhas nas vozes de Ademir Batista, Célia dos Santos, Dustan Gallas, João Brasil, Leandro Nomura, Lídice Xavier e Renato Gonçalves.

A gravação do funk contabiliza somente dois minutos e 30 segundos. Meros dois minutos e meio! Tempo suficiente para fazer história na música pop brasileira, inclusive porque, como já dito, o funk é assinado por Marina com o irmão Antonio Cicero, compositor (letrista) e poeta afinado com a norma culta da língua portuguesa tanto no meio musical quanto no literário. E cabe lembrar que – em requinte supremo de ironia! – Cicero foi admitido em agosto de 2017 na Academia Brasileira de Letras.

Ou seja, é um integrante do panteão dos imortais assinando, e avalizando com tal assinatura, uma letra que fala a língua popular do funk, com versos habitualmente caracterizados como “vulgares” pela elite cultural que insiste em avaliar qualquer música de acordo com os rebuscados padrões melódicos, harmônicos e rítmicos de uma MPB que, embora genial, já perdeu a hegemonia no mercado e jamais deve ser vista como o único parâmetro a medir o valor de qualquer música feita no Brasil. Uma MPB à qual a geração de Anitta e Ludmilla não pede a benção e da qual tampouco é seguidora.

A cantora e compositora Marina Lima  (Foto: Divulgação / Rogério Cavalcanti)
A cantora e compositora Marina Lima (Foto: Divulgação / Rogério Cavalcanti)

Desde que surgiu em 1979, no boom feminino que projetou cantoras e compositoras como Angela RoRo e Fátima Guedes no universo da MPB, Marina Lima sempre se mostrou moderna, antenada com o universo pop, seguindo caminho próprio, com opiniões próprias. Quando o Brasil ainda cantava embevecido os boleros havaianos de Lulu Santos, ela já chamava a atenção para Condição, funk que o colega contemporâneo – também ele antenado e simpatizante do som dos bailes da pesada – lançara em álbum de 1986.

Trinta e poucos anos depois, Marina elogia publicamente as estrelas do funk como Anitta e soa sincera. Primeira música revelada de álbum que a compositora caracteriza como “realista” e que apresentará parcerias da artista com nomes mais jovens como Marcelo Jeneci e Silva, Só os coxinhas soa natural dentro do currículo musical da artista.

Haverá quem jogue pedras na Geni da vez por divergências políticas e/ou musicais. Haverá quem ressuscite a questão da voz para detonar um funk que lhe causa desconforto por razões que nada têm a ver com a voz em si da cantora, ela própria já resolvida com tal questão. Mas o fato é que Marina Lima – em foto de Rogério Cavalcanti – está fazendo história hoje com o lançamento do funk Só os coxinhas. Aos detratores, o recado está dado na letra: “Bota o seu chapeuzinho / Sai abanando o rabinho”.