Ponto de mutação na trajetória artística de Zélia Duncan, o show Eu me transformo em outras (2003) – perpetuado em CD lançado em 2004 e em DVD editado em 2005 – sentenciou no título a metamorfose contínua que pautou dali em diante a carreira dessa cantora e compositora fluminense.

A conversão de Zélia em atriz no espetáculo Mordidas – peça em cartaz de sexta-feira a domingo na cidade do Rio de Janeiro (RJ) em temporada que se estende até 27 de maio – soa como movimento natural de uma artista que estudou teatro na carioca Casa de Artes de Laranjeiras (CAL) na segunda metade dos anos 1980 antes de se projetar como cantora a partir de 1990, ano da edição do primeiro álbum de Duncan, então conhecida como Zélia Cristina.

A artista já vinha se aventurando nos palcos nos últimos anos, mas sem deixar a cantora fora do palco. Na obra-prima Totatiando (2011), espetáculo inspirado pela obra de Luiz Tatit e dirigido pela mesma atriz Regina Braga com quem Zélia divide o palco em Mordidas, a artista começou a expandir os limites cênicos. Eternizado em DVD lançado em 2013, Totatiando não era um show, mas tampouco uma peça. O espetáculo se equilibrava entre o teatro e a música, mas sem flertar com o formato do musical.

Nesse gênero, Zélia estrelou em 2017 Alegria alegria – O musical, espetáculo dirigido por Moacyr Góes e encenado em São Paulo (SP) com a intenção de celebrar a Tropicália no roteiro centrado na obra de Caetano Veloso, compositor que organizou o movimento de 1967/1968 ao lado de outros arquitetos da contracultura da década de 1960.

Havia tanto em Totatiando como em Alegria alegria uma atmosfera teatral, mas a música conduziu ambos os espetáculos na voz grave de Zélia. Em Mordidas, a cantora está fora de cena. Quem divide o palco do Teatro Fashion Mall com Ana Beatriz Nogueira, Luciana Braga e a supra-citada Regina Braga é uma atriz. No caso, uma atriz escalada para entrar na pele de Martita, uma das quatro amigas que personificam o desprezo das elites pela classe trabalhadora que serve à sociedade.
Zélia Duncan e Ana Beatriz Nogueira na peça ‘Mordidas’ (Foto: Divulgação / Cristina Granato) Zélia Duncan e Ana Beatriz Nogueira na peça ‘Mordidas’ (Foto: Divulgação / Cristina Granato)

Zélia Duncan e Ana Beatriz Nogueira na peça ‘Mordidas’ (Foto: Divulgação / Cristina Granato)

IntituladoTarascones no original em espanhol de 2016, o texto do dramaturgo argentino Gonzalo Demaria é encenado no Brasil sob a direção de Victor Garcia Peralta com a versão feita por Miguel Falabella para o português e para o universo do Brasil.

Ácido, o texto sobre quatro amigas que vociferam contra uma empregada doméstica (mencionada o tempo todo, mas nunca vista em cena) – a quem acusam de matar o cachorro de uma delas – oferece matéria-prima até para ser encenado como um teatro do absurdo. Ou como uma farsa refinada. Na versão brasileira, a peça tende a cair no humor das comédias populares, provocando certa empatia com a plateia pela acentuação do matiz patético dos diálogos corrosivos (escritos em versos) para extrair o riso.

Mesmo que ainda não tenha o timing perfeito de Ana Beatriz Nogueira, atriz de pausas e olhares sagazes, Zélia cumpre bem o papel a que lhe é destinado em Mordidas. Símbolo da mentalidade pequeno burguesa que grassa no mundo, inclusive em território brasileiro, a verborragia azeda de Martita no início da encenação surte efeito imediato e dá o tom desse espetáculo que se propõe a fazer uma crítica da sociedade que, por ironia, é o público-alvo de Mordidas.

No fundo sempre mutante, Zélia Duncan abre frente de trabalho ao deixar a cantora fora de cena para se transformar na atriz que dá voz a Martita, escancarando o teatro insensível das elites.