Houve um público que descobriu o canto teatral de Cida Moreira no início dos presentes anos 2010, mais precisamente a partir da edição do cultuado álbum A dama indigna (Joia Moderna, 2011), registro de estúdio do show em que a cantora e atriz paulista reassumiu a interpretação da dama do cabaré, personagem recorrente na trajetória artística de Cida. A dama indigna revigorou a carreira da artista, fazendo crescer o interesse pelos discos e shows da intérprete.

Por isso mesmo, a chegada de quatro importantes álbuns de Cida às plataformas digitais via Tratore – Abolerado blues (Lira Paulistana, 1983), Cida Moreyra (Continental, 1986), Cida Moreyra interpreta Brecht (Continental, 1987) e Angenor (Lua Music, 2008) – ajuda esse público interessado em conhecer a história dessa cantora que mais bem encarna no Brasil a persona artística da saloon singer e que assinava Moreyra com “y” na década de 1980.

Em cena há cerca de 40 anos, Cida Moreira se associou de início à Vanguarda Paulista, movimento assim batizado por ter experimentado e proposto, no início da década de 1980, outra forma de compor e cantar música brasileira com Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção (1949 – 2003) à frente da turma. Não por acaso, o segundo álbum de Cida – Abolerado blues, disco ainda inédito no formato de CD – saiu em 1983 com o selo da Lira Paulistana, espécie de QG do movimento.

Capas dos quatro álbuns de Cida Moreira que ganham edição digital (Foto: Divulgação / Tratore)
Capas dos quatro álbuns de Cida Moreira que ganham edição digital (Foto: Divulgação / Tratore)

É em Abolerado blues que, entre músicas de Eduardo Dussek e Zé Rodrix (1947 – 2009), a cantora dá a voz operística pela primeira vez em disco a uma versão em português de música da parceria dos compositores alemães Bertolt Brecht (1898 – 1956) e Kurt Weill (1900 – 1950).

A propósito, a obra musical de Brecht e Weill é o mote do antológico álbum Cida Moreyra interpreta Brecht, lançado em 1987 e lamentavelmente nunca editado no formato de CD. Nesse conceitual disco de atmosfera teatral, Cida é mais perfeita tradução de uma cantora de cabaré alemão dos anos 1930. No cabaré fonográfico em que Cida canta Brecht, as músicas do compositor com Weill são costuradas com a vinheta instrumental Moritat (Die Moritat Von Mackie Messer), evocando bem o universo e o clima do cancioneiro dos alemães.

Um ano antes desse disco pioneiro no Brasil, houve o primeiro dos dois álbuns feitos por Cida na atualmente extinta gravadora Continental, Cida Moreyra, de 1986. Trata-se de primoroso disco de repertório mais versátil em que Cida vai de Altay Veloso a Zé Miguel Wisnik, passando por Paulinho da Viola e pelo recorrente Arrigo Barnabé. Esse álbum chegou a ser editado em CD, mas com outra capa.

Um dos pontos mais altos do álbum de 1986 é Furacão, certeira versão em português (escrita por Miguel Paiva) de Hurricane, música composta por Bob Dylan com Jacques Levy e lançada pelo cantor norte-americano em single de 1975. Petardo disparado pelo canto teatral da dama do cabaré, Furacão é cruzado no queixo da (in)justiça, dado em sintonia com a letra original dessa canção composta para denunciar a farsa armada no tribunal para condenar o lutador de box Rubin Carter (1937 – 2014), o Hurricane do título em inglês da composição.

Destoando do lote de títulos ora inseridos nas plataformas digitais, Angenor flagra Cida em tempo outonal, com mais graves no canto agudo, então já maturado pela vida e pelos palcos. Álbum lançado há dez anos, Angenor é sensível e delicado tributo ao centenário de nascimento do compositor carioca Cartola (1908 – 1980). Cida Moreira celebrou Cartola sem obviedade, reforçando a assinatura pessoal de obra fonográfica que fica enfim disponível em edição digital para quem a descobriu a partir de A dama indigna e também para futuras gerações, já que os sempre excelentes álbuns da cantora nunca têm prazo de validade.