Assim que acabou de cantar Olhos nos olhos (Chico Buarque, 1976), Maria Bethânia surpreendeu o público que lotou a casa Vivo Rio na noite de ontem, 6 de março, para assistir ao show da cantora, no primeiro dos dois dias de gravação ao vivo de DVD previsto para ser lançado no segundo semestre deste ano de 2018 pela gravadora Biscoito Fino. “Um momento! Houve um problema gravíssimo de som para mim. Podemos repetir, por favor?”, disse Bethânia, interrompendo o fluxo do roteiro desse show de conceito mais fluido, captado para o DVD sob a direção de Marcio Debellian.

Liderados pelo baixista Jorge Helder, diretor musical do show, os músicos da banda deram a impressão de que não compreenderam o “problema gravíssimo” apontado pela intérprete, mas acataram o pedido da cantora. Já o público de súditos aplaudiu e saboreou a repetição da canção de Chico Buarque que abriu as portas das emissoras de rádio AM para Bethânia no já longínquo ano de 1976.

Maria Bethânia na gravação do DVD em show no Rio (Foto: Mauro Ferreira)
Maria Bethânia na gravação do DVD em show no Rio (Foto: Mauro Ferreira)

Nesse espetáculo caracterizado por Bethânia como “show de rua” e apresentado pelo Brasil desde fevereiro de 2017, a cantora em tese revive sucessos que marcaram os 53 anos de carreira fonográfica. Alguns – como a releitura da balada sertaneja É o amor (Zezé Di Camargo, 1991), refinada por Bethânia em controvertida gravação de 1999 – batem ponto no roteiro desde a estreia da turnê nacional. Outros hits, como Esse cara (Caetano Veloso, 1972) e Terezinha (Chico Buarque, 1977), entraram no roteiro para a gravação do DVD.

“É emocionante cantar Chico Buarque, Terezinha, muitos anos depois, no palco que ele acabou de ocupar”, disse Bethânia, se referindo ao fato de Chico, compositor da canção, ter encerrado na casa Vivo Rio, em fevereiro, a temporada carioca da turnê do show Caravanas. A bem da verdade, Esse cara e Terezinha foram as únicas novidades de um show que, a rigor, costura números dos roteiros de espetáculos anteriores da artista.

Nessas duas músicas, Esse cara e Terezinha, é possível perceber as mudanças no canto maturado de Bethânia, que fará 72 anos em junho. A sensualidade e a impetuosidade das interpretações de outrora soam mais rarefeitas, dando lugar a uma dose maior de suavidade nas abordagens dessas músicas emblemáticas na trajetória da intérprete. Tal suavidade é condizente com a delicadeza terna que pauta as lembranças de Onde estará o meu amor? (Chico César, 1996) e Gostoso demais (Dominguinhos e Nando Cordel, 1986), linkadas no roteiro justamente pela dose de ternura.

Maria Bethânia na gravação de DVD em show no Rio (Foto: Mauro Ferreira)
Maria Bethânia na gravação de DVD em show no Rio (Foto: Mauro Ferreira)

Para os súditos que gritaram adjetivos como “necessária” e “rainha” na plateia da casa Vivo Rio, o número escasso de hits possíveis nesse “show de rua” parece ser dado irrelevante. Não há no roteiro o samba Sonho meu (Ivone Lara e Délcio Carvalho, 1978), o hino de sentido originalmente político Explode coração (Gonzaguinha, 1978) e tampouco a canção Grito de alerta (Gonzaguinha, 1979), três retumbantes sucessos que ajudaram a tornar Bethânia a cantora mais popular do Brasil no fim dos anos 1970.

Bethânia optou por cantar sucessos de um hit parade particular em que parecem estar eternamente entronizadas músicas do compositor baiano Roque Ferreira, como Doce (2008) e Lágrima (2006), assim como os sambas de roda do Recônvavo Baiano, revividos no já tradicional pot-pourri, ilustrado na gravação do DVD com imagens do documentário Fevereiros (2016), dirigido por Marcio Debellian. Sem falar no bis, infalivelmente encerrado com o samba O que é o que é (Gonzaguinha, 1982).

De todo modo, justiça seja feita, o samba-canção Negue (Adelino Moreira e Enzo de Almeida Passos, 1960) e uma das últimas grandes canções do Roberto, Fera ferida (Roberto Carlos e Erasmo Carlos, 1982), foram mantidas no roteiro, para deleite da plateia. Quem segue Bethânia pelos palcos sabe que as inflexões, poses e ênfases nas interpretações das músicas permanecem em cena como antes. Mas a mágica sempre parece funcionar. E funcionou ontem. De novo. Mais uma vez.

Maria Bethânia na gravação de DVD em show no Rio (Foto: Mauro Ferreira)
Maria Bethânia na gravação de DVD em show no Rio (Foto: Mauro Ferreira)

A grande questão, para estes espectadores fiéis, é saber se a cantora ligará o piloto automático – ação não tão incomum no decorrer das turnês. No show feito ontem no Rio de Janeiro (RJ), cidade reverenciada com o samba Rio de Janeiro (Isto é o meu Brasil) (Ary Barroso, 1950) e com a marcha Cidade maravilhosa (André Filho, 1934), Bethânia não bateu ponto. Até porque tratava-se de apresentação que será perpetuada para a posteridade.

No palco do Vivo Rio, Bethânia foi simplesmente Bethânia. Lançou mão do magnetismo habitual que lhe torna soberana em cena, dona do dom, entronizada no direito de reclamar quando acendem a luz da plateia em momento de entusiasmo do público (“Detesto. Caio do trapézio“, justificou, poeta).

Eterna rainha da cena, Bethânia pode ser dar ao luxo de reverenciar com saudade a figura do percussionista Naná Vasconcellos (1944 – 2016) quando canta Frevo nº 2 do Recife (Antônio Maria, 1954) e, alguns momentos depois, puxar a capella o refrão de massivo sucesso do cantor baiano Pablo, Vingança do amor (Tierry Coringa, Filipe Escandurras e Magno Santanna, 2014). Bethânia pode porque tudo se irmana e se engrandece na magnitude do canto da intérprete-orixá. O que explica o êxtase do público diante de show menor dentro da grandiosa carreira de Maria Bethânia. (Cotação: * * * 1/2)

Maria Bethânia na gravação de DVD em show no Rio (Foto: Mauro Ferreira)
Maria Bethânia na gravação de DVD em show no Rio (Foto: Mauro Ferreira)

Eis o roteiro seguido na noite de 6 de março de 2018 por Maria Bethânia na casa Vivo Rio, na cidade do Rio de Janeiro (RJ), no primeiro dos dois dias de gravação do próximo DVD da cantora:

Ato 1

1. Gema (Caetano Veloso, 1980)

2. O quereres (Caetano Veloso, 1984)

3. Dona do raio e do vento (Paulo César Pinheiro, 2006)

4. Onde estará o meu amor? (Chico César, 1996) /

5. Gostoso demais (Dominguinhos e Nando Cordel, 1986)

“Mora comigo na minha casa…” (Luiz Carlos Lacerda, 1973) – Texto

6. Esse cara (Caetano Veloso, 1972)

7. Terezinha (Chico Buarque, 1977)

8. Estado de poesia (Chico César, 2012)

9. Fera ferida (Roberto Carlos e Erasmo Carlos, 1982)

10. Negue (Adelino Moreira e Enzo de Almeida Passos, 1960)

11. Lágrima (Roque Ferreira, 2006)

12. Balada de Gisberta (Pedro Abrunhosa, 2007)

Ato 2

13. Cálice (Gilberto Gil e Chico Buarque, 1973)

14. Sonho impossível (The impossible dream) (Mitch Leigh e Joe Darion, 1965, em versão em português de Chico Buarque e Ruy Guerra, 1972)

15. Rio de Janeiro (Isto é o meu Brasil) (Ary Barroso, 1950)

16. Doce (Roque Ferreira, 2008)

17. Eu e água (Caetano Veloso, 1988)

18. Vento de lá (Roque Ferreira, 2007)

19. Imbelezô (Roque Ferreira, 2014)

20. Frevo nº 2 do Recife (Antônio Maria, 1954)

21. Samba da benção (Baden Powell e Vinicius de Moraes, 1966)

22. Âmbar (Adriana Calcanhoto, 1996)

Soneto da infidelidade (Vinicius de Moraes) – Texto

23. Vingança do amor (Tierry Coringa, Filipe Escandurras e Magno Santanna, 2014) – a capella

24. Esotérico (Gilberto Gil, 1976)

25. É o amor (Zezé Di Camargo, 1991) /

26. Vai dar namoro (Chico Amado e Dedé Badaró, 2003)

27. Olhos nos olhos (Chico Buarque, 1976)

28. Volta por cima (Paulo Vanzolini, 1962)

29. Meu amor é marinheiro (Alan Oulman sobre versos de Manuel Alegre, 1974)

30. Maria Bethânia, a menina dos olhos de Oyá (Alemão do Cavaco, Almyr, Cadu, Lacyr D Mangueira, Paulinho Bandolim e Renan Brandão, 2016)

31. Santo Amaro Ê Ê (tema tradicional) /

32. Quixabeira (tema tradicional) /

33. Reconvexo (Caetano Veloso, 1989) /

34. Minha Senhora (tema tradicional) /

35. Viola meu bem (tema tradicional) /

“Sou eu mesmo o trocado” (Fernando Pessoa) – Texto

36. Non, je ne regrette rien (Charles Dumont e Michel Vaucaire, 1956)

Bis:

37. Cidade maravilhosa (André Filho, 1934)

38. O que é o que é (Gonzaguinha, 1982