Diretora diz que entender ritmos populares é chave para fazer brasileiro adotar música online. De novidade a padrão, formato recuperou indústria, mas é cobrado por renda e critérios de playlists.

O streaming já deixou de ser novidade e virou padrão. O brasileiro escuta mais música online do que os velhos discos ou downloads avulsos. As perguntas agora são: como essa mudança aconteceu? E aonde esse formato vai nos levar?

Para Roberta Pate, diretora de relacionamento com artistas e gravadoras do Spotify na América Latina, uma chave do presente e do futuro é se conectar com os estilos populares do Brasil, além do eixo Rio-SP.

Uma das particularidades do brasileiro é de consumir muita música local. Por isso o Spotify corre atrás de escritórios sertanejos, festas de São João, bailes de brega-funk, encontros de música gospel…

Sua equipe faz a ponte do Spotify com gravadoras, artistas e seus representantes. Uma ponte de ouro: graças ao streaming, a indústria musical no Brasil cresceu 15,4% em 2018, uma façanha em tempos de crise.

O Spotify é o maior serviço pago de streaming do mundo, com mais de 100 milhões de assinantes (eles não divulgam dados por país). Isso após anos de crise com o compartilhamento gratuito de mp3 e o declínio dos CDs.

Mas a liderança também traz críticas. A principal, sobre o pagamento a artistas considerado baixo, até diminuiu. Mas ainda há dúvidas, desde concorrentes gigantes até critérios de playlists. Como a grande vitrine da música atual decide quem tem destaque por lá?

E, olhando ainda mais o futuro, vale a pena investir no Spotify como coleção de música? Ou ele pode acabar obsoleto como o iPod ou o próprio CD? Leia a entrevista, dividida em três partes:

  1. Como o streaming cresceu no Brasil
  2. Qual o espaço global da música latina – e do funk brasileiro
  3. Spotify em cheque: quais são os critérios de conteúdo

1 – Como o streaming cresceu no Brasil

G1 – O streaming já é a forma principal de consumo musical no Brasil e fez nossa indústria se recuperar. A que você atribui esse crescimento, em especial do Spotify?

Roberta Pate – O Brasil sempre foi um dos principais mercados do mundo e é muito plural. Em um mercado complexo como o brasileiro, você tem que entender as nuances e construir uma estratégia de falar com essa audiência aos poucos.

Também teve uma adoção muito legal da indústria. E aconteceu uma queda vertiginosa do físico (CDs e DVDs) nos últimos dois anos. Até um pouco antes do que era previsto.

G1 – O que vocês perceberam de particular no Brasil?

Roberta Pate – Logo no primeiro ano percebemos que a plataforma precisava refletir o consumo de música local. A música local é muito mais tocada. Mas no nosso primeiro ano, nossos charts eram 90%, às vezes 100% internacionais. A gente reparou que nem o artista e nem o usuário iam se identificar com aquilo.

Começamos atividades focadas em música local, para tentar refletir dentro da plataforma o que a gente sabia que acontece fora. Não são todos os mercados de música em que o local é tão importante e que a produção cultural é tão efervescente. Isso é muito importante no Brasil.

G1 – Em 2017, o G1 fez uma reportagem sobre a ausência do sertanejo nas paradas de streaming da época. Um executivo disse os sertanejos estavam começando a se aproximar do streaming e iam crescer. E isso aconteceu. Como foi este movimento?

Roberta Pate – No sertanejo a gente teve que fazer diversas viagens para Goiânia. Fomos a vários lugares encontrar com eles, mostrar como era. Mas o artista e o escritório não começam a usar na hora, tem uma curva de aprendizagem, de entender a plataforma.

Também é muito interessante como o fenômeno é diferente para cada gênero. Por exemplo, o funk é muito viral. É muito fácil uma música entrar no “top” por algumas semanas e depois ela desce, logo depois vem outra…

No sertanejo a curva é diferente, a gente vê isso dentro das playlists e das paradas. Lança uma música, pode ser da maior dupla sertaneja do Brasil, e vai demorar até ela chegar [na parada]. Mas aí ela vai ficar muito tempo lá.

G1 – Então o esforço foi não só para eles entenderem o Spotify, mas para vocês os entenderem?

Roberta Pate – Sempre. Hoje vou fazer uma apresentação [para o mercado gospel] e depois a gente vai ter uma confraternização. Porque é muito diferente, e não tem como a gente abarcar tudo de uma vez. Temos que usar todas as oportunidades para investigar mesmo. Perguntar como é, como fazer essa parceria.

G1 – Além do gospel, onde você acha que podem crescer?

Roberta Pate – Temos focado em sair um pouco do eixo Rio-SP, onde a gente já está presente. Nossa equipe foi agora para o São João lá em Campina Grande (PB). E montou uma apresentação falando o que eles viram, a dinâmica do show, observações sobre o setlist, o que foi peculiar.

Coisas que você não nota se você não vai, conversa com as pessoas, o público, a menina que vende pipoca… E, conversando, monta um dossiê, mostra as oportunidades que a gente tem lá. Como o Spotify se encaixa, ou pode se encaixar daqui um tempo. O projeto que a gente chama de expansão geográfica.

G1 – Sobre este mercado do Nordeste, há um serviço de streaming brasileiro, o Sua Música, que vai muito bem lá. O CEO diz que a região é subestimada pela indústria.

Roberta Pate – Não acho que é subestimado – por conta da produção musical, de vários artistas assinados. Eles têm um modo diferente de operar lá [no Sua Música]. No modelo deles o artista chega, sobe qualquer conteúdo – é uma coisa diferente no mercado. A questão da a remuneração também.

Mas definitivamente [a região] tem muito potencial. Porque a música é muito aquecida, a produção cultural. É um lugar em que a gente quer muito estar.

G1 – Estes relatórios sobre as cenas brasileiras são um formato padrão do Spotify da Suécia (sede da empresa) ou vocês foram criando?

Roberta Pate – Não, foi a gente, por conta dos artistas de outras regiões. Pessoas que não estão em São Paulo, sem uma gravadora que possa representar.

A minha equipe começou a fazer viagens ao Nordeste para começar a entender esses artistas. Ir no pré-carnaval, saber quais artistas que estão despontando, não aqueles óbvios que a gente já conhece.

Depois a gente faz um “próximos passos”: a gente tem como agir imediatamente? Tem como fazer alguns testes no digital? Vamos esperar o lançamento forte de um artista específico?

Roberta Pate, diretora de Relacionamento entre Artistas e Gravadoras do Spotify na América Latina — Foto: Arquivo pessoal
Roberta Pate, diretora de Relacionamento entre Artistas e Gravadoras do Spotify na América Latina — Foto: Arquivo pessoal

2 – Qual o espaço global da música latina – e do funk brasileiro

G1 – Você trabalha com a música de toda América Latina, que explodiu nos últimos anos. Ainda existe espaço para a música latina crescer?

Roberta Pate – Sim. Essa cultura do “featuring” (colaborações) permite isso. Porque você compartilha audiência. Os artistas latinos têm feito “featurings”, não só dentro da região. Anitta é uma expoente do Brasil que faz muito isso.

Acho que tem outros movimentos. A música africana, o afrobeat, está vindo. Essa música da Beyoncé do Rei Leão… acho que vai vir uma onda.

Da Índia também, a gente chegou lá há seis meses. Mas não necessariamente uma coisa compete com a outra. K-pop está gigantesco, mas não tira o espaço de outros. Todo mundo coexiste.

G1 – E para a música brasileira neste cenário? O quanto o idioma dificulta?

Roberta Pate – A barreira do idioma existe. Alguns segmentos são bem aceitos, como a MPB. O funk há dois anos começou a fazer esse movimento. A Rihanna botou na abertura do desfile dela a música da Ludmilla. Acho que é uma questão de familiarizar o português, assim como o espanhol começou.

Com a música você começa a entender um pouco mais certas palavras. Acho que o funk que tem um papel importante nisso. Mas é um desafio, sem dúvidas. Você tem que criar conteúdo relevante que dê para associar ao idioma.

G1 – E lá fora as pessoas veem esse potencial do funk? Aí falando não só da língua, mas do som.

Roberta Pate – Acredito que sim, por um momento macro que é o da música urbana. No Brasil o gênero urbano que mais faz esse “crossover” (ponte) é o funk. No resto do Cone Sul, Argentina e Chile, é o trap. Na Colômbia tem o reggaeton e o popetón.

Também acho que a indústria do funk precisa começar a se colocar um pouquinho mais fora, para ter mais essa troca. O reggaeton estourou com uma trajetória muito longa. De criar cultura e relações para que o processo criativo aconteça

G1 – Até por essa expectativa, quando o pessoal do funk lança coisas de um jeito orgânico, sem método, é difícil trabalhar com esse mercado?

Roberta Pate – Eles estão se profissionalizando muito. Hoje tem pessoas ultra qualificadas trabalhando com os grandes selos de funk. Alguns anos atrás era uma coisa quase caseira, né? Produzir música, descobrir como entrega, e fazer seus rolês da vida, de bailes e tudo mais.

Hoje é totalmente diferente: as pessoas que trabalham entendem de processo digital, a dinâmica do mercado e começam a trabalhar com estratégia.

Como você falou, o funk sempre foi muito orgânico, para eles é muito rápido: produzir a música, colocar na plataforma. É uma adaptação. Tem uma música pronta? Espera, calma, pensa o que você quer. Vamos criar um plano, amarrar com alguma coisa na identidade. Para eles é um processo novo, mas está rolando.

3 – Spotify em cheque: quais são os critérios de conteúdo

G1 – Como vocês participam dos lançamentos? Que prioridades dão a gravadoras ou a artistas independentes?

Roberta Pate – É uma pergunta complicada. Porque com a gravadora a gente tem uma rotina de trocar informações. Até porque eles lançam muitas coisas ao mesmo tempo.

E a gente tem um foco grande em manter as portas abertas para os independentes também. Uma das maneiras de democratizar foi lançando a ferramenta Spotify for Artists. O artista vê qual é seu público: masculino, feminino, quais cidades, países… Tudo em tempo real, música por música.

Dentro dessa plataforma a gente tem uma ferramenta para indicar músicas para a equipe editorial. O artista pode falar um pouquinho sobre aquela música. A gente passou a receber muito mais música. E aí os editores passam hoje muito mais tempo investigando isso para as playlists.

G1 – No início, os artistas reclamavam dos pagamentos baixos do streaming. Pelo menos com o Spotify, isso tem diminuído. Acha que eles entendem melhor?

Roberta Pate – Sem dúvidas. É uma mudança de paradigma. De sair de modelo da posse, da compra, e ir pro modelo do streaming, que é de divisão das receitas. Quando a nossa base fica maior, claro que as receitas vão ser mais representativas. Você começa a ver valores mais robustos.

G1 – A Amazon chegou ao Brasil com um preço baixo em um pacote que inclui streaming de música. Como isso afetou vocês?

Roberta Pate – O Spotify nasceu para o mercado da música. A gente está focado no áudio. A Amazon oferece um pacote com outras coisas. E outro tipo de serviço A gente está indo mais para especialização no áudio. Essa é a aposta e os resultados são excelentes.

G1 – O iPod surgiu há quase 20 anos como tocador de música “do futuro” e ficou obsoleto. Muita gente fez coleções lá e hoje nem consegue acessar direito. Como garantir à pessoa que está investindo financeiramente e até emocionalmente, que daqui a vinte anos o Spotify não vai ficar obsoleto também? E aí vai ter que refazer a coleção em outro lugar…

Roberta Pate – Tudo indica que está muito longe de chegar nesse momento. O mercado ainda tem muito o que crescer. As plataformas de streaming ainda nem estão competindo pelo mesmo público. Está cada um indo atrás de pessoas que ainda não estão usando.

Ainda tem um mercado a ser desbravado. Nada indica que vai ter uma mudança de formato. As evidências apontam que o streaming se consolidou e ainda vai se expandir muito.

G1 – O estilo de funk que mais aparece hoje nas paradas de Streaming tem muitas letras ousadas sobre sexo, para maiores de 18. Como vocês encaram isso, há algum filtro?

Roberta Pate – Os artistas e todo mundo que entrega conteúdo recebem guidelines (parâmetros) sobre o conteúdo que estão entregando. São coisas que não seriam toleráveis no sentido de discurso de ódio.

Mas não tem isso para coisas culturais. Se você falar ousadia, tudo bem, é um movimento cultural que existe fora da plataforma. Se você quer, escuta; se não, não escuta.

Mas se existe discurso de ódio a gente vai investigar. Conversa com quem entregou, entende aquilo, e pode remover da plataforma.