Espetáculos na quarentena usam tecnologia para tentar recriar o jogo teatral e manter grupos ativos. Thiago Lacerda e diretores comentam experiências digitais acompanhadas pelo G1.

'A Arte de Encarar o Medo', do grupo Os Satyros, está em cartaz no Zoom — Foto: Divulgação
'A Arte de Encarar o Medo', do grupo Os Satyros, está em cartaz no Zoom — Foto: Divulgação

Sem poder aglomerar pessoas em salas ou teatros, artistas e companhias têm se reinventado durante o isolamento social e criado espetáculos transmitidos pela plataforma ou através de lives nas redes sociais (veja agenda de eventos abaixo).

Em vez daquele burburinho das pessoas entrando no teatro, os momentos pré-espetáculo são de ajustes. Você precisa deixar o vídeo e o microfone desligados e marcar a opção de mostrar apenas quem está com a câmera aberta em destaque.

Um dos “truques” de “A Arte de Encarar o Medo”, do grupo paulistano Os Satyros, e de “Parece Loucura, mas Há Método”, da Armazém Companhia de Teatro do Rio, é abrir e fechar câmeras.

As narrativas vão se desenvolvendo e os atores ligam a câmera, fazem suas cenas em destaque, depois desligam e vão para a “coxia imaginária”.

Nos espetáculos com 18 e 10 atores, respectivamente, a movimentação é ágil. Além das boas atuações, as trilhas bem marcadas e efeitos visuais contribuem para o clima das peças.

Interatividade x falta do público no espaço

Já que o calor do público não pode ser sentido presencialmente, os dois espetáculos vistos pelo G1 buscam se aproximar das pessoas pela interatividade na internet.

Em “A Arte de Encarar o Medo”, dois atores perguntam no começo quais são os medos do público. A peça se passa 5.555 dias depois do início da quarentena em uma sociedade ainda em isolamento.

“A gente encontrou essa solução para poder ter um vínculo real com o público, manter a conexão que durasse no espetáculo”, explica Rodolfo García Vázquez, um dos fundadores do Satyros e diretor da peça.

Depois de cada sessão, os atores também convidam o público para ligar suas câmeras e participar de uma roda de conversa. “Acaba se tornado até mais caloroso e forte do que quando é presencial e não tem nenhuma ação depois”, continua.

“Apesar de tecnológica e não corpórea, está sendo uma experiência bastante humana e intensa”, defende o diretor.

Peça "Parece Loucura mas há Método" da Armazém Companhia de Teatro  — Foto: Divulgação
Peça “Parece Loucura mas há Método” da Armazém Companhia de Teatro — Foto: Divulgação

Já em “Parece Loucura, mas Há Método”, são nove personagens de Shakespeare que fazem “batalhas” de cenas e o público que vota em quem deve continuar. O desejo da participação das pessoas não é novidade para a companhia.

“O público precisa experienciar algo que o transforme, que o coloque de forma ativa no processo do espetáculo”, diz o diretor Paulo de Moraes.

“A internet dá voz a todos, então, pensamos que o espetáculo precisaria dar também essa ‘voz’. Fazemos uma brincadeira com essa cultura do ‘cancelamento’, propondo que o público escolha as histórias que quer continuar conhecendo e ‘cancele” outras'”, explica.

Teatro em lives

Thiago Lacerda em cena de 'Quem Está Aí? – Monólogos de Shakespeare' feita através de uma transmissão on-line — Foto: Reprodução/YouTube/Sesc São Paulo
Thiago Lacerda em cena de ‘Quem Está Aí? – Monólogos de Shakespeare’ feita através de uma transmissão on-line — Foto: Reprodução/YouTube/Sesc São Paulo

Quem também fez uma peça on-line com textos de Shakespeare foi o ator Thiago Lacerda para o projeto Em Casa com o Sesc.

A experiência, nesse caso, é diferente para quem faz e para quem assiste, porque é uma live em que o ator interpreta o texto para uma câmera. É bem mais limitado do que os espetáculos via Zoom, e talvez por isso a sensação para Lacerda nem é a de teatro.

“Não acho que o que aconteceu tenha sido teatro. Talvez a gente precise encontrar um outro nome para o que é”, diz o ator ao G1.

“Ao mesmo tempo que foi estranho, foi desafiador, foi revelador, foi gratificante, foi poderoso, foi comunicativo”.

Ele interpretou “Quem Está Aí”, uma montagem de três monólogos de Shakespeare, que já faz há 10 anos, e sentiu falta do público mesmo falando para mais de mil pessoas ao vivo.

O espetáculo está disponível no canal de YouTube do Sesc, assim como peças e shows transmitidos anteriormente.

É rentável financeiramente?

Sem espetáculos e sem poder dar aulas ou oficinas, a renda de quem vive de teatro ficou bastante comprometida durante a pandemia.

Além de manter os artistas ativos, o teatro on-line tem sido uma alternativa financeira viável para estes tempos difíceis. Ainda mais porque o público na internet tem potencial para ser muito maior.

“A gente paga aluguel sem ter nenhum tipo de rendimento e a opção que nos resta é entregar o imóvel e começar nossa vida do zero”, diz Vázquez, dos Satyros.

O diretor diz que a bilheteria on-line fica em torno de 60% a 70% do que eles faturam no teatro na Praça Roosevelt em São Paulo, mas que houve picos perto da estreia que superaram a marca do teatro físico.

“A gente pode ter até mil pessoas na sala do Zoom. Nossa sala só cabe 60 pessoas presencialmente. Então a gente tem capacidade para ter muito mais público”, diz.

A peça fica em cartaz por tempo indeterminado e a companhia se organiza para duas montagens internacionais: uma americana e outra europeia-africana com atores de 9 países diferentes.

“É uma loucura pensar que a gente está ensaiando uma peça que as pessoas estão a 20 mil km de distância umas das outras e estão contracenando, criando cenas, criando emoções ao vivo”, completa Vázquez.

O monólogo “Todos os Sonhos do Mundo”, com o ator Ivam Cabral e fundador do Satyros, também está em cartaz.

Para Moraes, da Armazém Companhia de Teatro, estar fazendo teatro on-line também é simbólico: “Essa nossa estreia é uma tentativa de resistência, de reconstrução da possibilidade de viver do nosso trabalho”.

Concentração e frio na barriga

No bate-papo pós-espetáculo, os atores dos Satyros falam que a experiência é próxima do teatro presencial e que dá até para sentir um leve ansiedade antes da transmissão.

“O frio na barriga indica que o que a gente faz é teatro também. Acho que é uma ferramenta que veio para ficar, para nos acolher nessa resistência”, diz o ator Fábio Penna. “O teatro não é mais regional, é para o mundo”.

Lidar com questões imprevisíveis e com o acaso também reforçam o fazer teatral no on-line. Vázquez diz que já houve sessões em que a internet caiu e o ator fez a cena com a internet do celular e, em outra, acabou a luz na casa e foi preciso acender velas.

Peça "Parece Loucura mas há Método", da Armazém Companhia de Teatro, faz o público escolher qual personagem deve continuar em cena — Foto: Divulgação
Peça “Parece Loucura mas há Método”, da Armazém Companhia de Teatro, faz o público escolher qual personagem deve continuar em cena — Foto: Divulgação

Moraes também falou do estado de atenção dos atores mesmo em casa: “É uma concentração muito parecida. Falta o contato mais físico com os parceiros de cena, mas estamos todos conectados, em estado de atenção constante”.

“Cada um separou um canto de sua casa que virou um misto de camarim, coxia e palco”, diz o diretor. Ele ensaiou com os atores separadamente em reuniões virtuais em que eles discutiam como seria o cenário e o figurino.

Opção mais democrática?

Toda a estrutura de um espetáculo em cartaz, com técnicos, cenógrafos, iluminadores e todos os outros profissionais dos bastidores, não é igual no teatro on-line, mas a alternativa democratizou de certa forma o acesso aos espetáculos dessas companhias.

Nas salas de zoom, pessoas de todas as cidades do Brasil e do mundo podem ver o que os grupos de São Paulo e do Rio produziriam em suas cidades.

“Nosso público mudou completamente. Passou a ser pessoas que moram na esquina da Praça Roosevelt, que já acompanham nosso trabalho há muito tempo, pessoas que estão em Manaus, no interior do Mato Grosso”, diz Vázquez, do grupo Os Satyros.

“É como se abrisse uma porta de um novo mundo, um mundo em que o artista não se sente incapaz. Essa pandemia nos colocou em uma posição muito vulnerável como artista”, afirma o diretor.

Peças em cartaz

“Parece Loucura, mas há Método”, da Armazém Companhia de Teatro

  • Elenco: Charles Fricks, Isabel Pacheco, Jopa Moraes, Kelzy Ecard, Liliana de Castro, Luis Lobianco, Marcos Martins, Patrícia Selonk, Sérgio Machado e Vilma Melo.
  • Quando: sextas e sábados, às 20h; domingos, às 18h
  • Onde: Aplicativo Zoom
  • Ingressos: a partir de R$ 10 no site. O espectador escolhe o valor do ingresso que quer adquirir.

“A Arte de Encarar o Medo”, da companhia Os Satyros

  • Direção: Rodolfo García Vázquez
  • Elenco: Ivam Cabral, Eduardo Chagas, Nicole Puzzi, Ulrika Malmgren, Diego Ribeiro, Dominique Brand, Fabio Penna, Gustavo Ferreira, Henrique Mello, Julia Bobrow, Ju Alonso, Marcelo Thomaz, Marcia Dailyn, Mariana França, Sabrina Denobile e Silvio Eduardo
  • Quando: sextas e sábados, às 21h; domingos, às 16h
  • Onde: Aplicativo Zoom
  • Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia), há ingresso solidário e também a opção de fazer uma doação para o grupo.

“Todos os Sonhos do Mundo”, da companhia Os Satyros

  • Direção: Rodolfo García Vázquez
  • Elenco: Ivam Cabral
  • Quando: sextas e sábados, às 21h; domingos, às 16h
  • Onde: Aplicativo Zoom
  • Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia), há ingresso solidário e também a opção de fazer uma doação para o grupo.

Em Casa Com Sesc

Canal de YouTube do Sesc transmite peças, shows e palestras semanalmente. A programação é postada nas redes sociais.