Em 1980, o artista gráfico Elifas Andreato retratou Adoniran Barbosa (1910 – 1982) como um palhaço triste para a capa do álbum comemorativo dos 70 anos de vida do cantor, compositor e ator paulistano. Advertido por executivo da gravadora Odeon sobre a possibilidade de o artista não entender o sentido da ilustração (vista acima), Elifas fez outro retrato de traços mais convencionais. Esta segunda ilustração foi a exposta na capa do disco.

Tempos depois, Elifas recebeu telefonema de um inconformado Adoniran. Ao tomar conhecimento da ilustração original, Adoniran se identificara com o retrato. “Aquele palhaço triste sou eu”, disse para Elifas. O causo está no documentário Adoniran – Meu nome é João Rubinato, em exibição na 23ª edição do festival É tudo verdade, roteirizado e dirigido por Pedro Serrano. “A obra de Adoniran é trágica. Com certo humor, ele conseguiu fazer a gente rir da desgraça que é a condição dessa vida”, resume Elifas, no mais contundente depoimento analítico do filme.

Ao apresentar o documentário em sessão realizada no Rio de Janeiro (RJ) na noite de ontem, 17 de abril de 2018, o diretor Pedro Romano ressaltou o tom tradicional do filme, enquadrado em formato convencional, “sem maneirismos de linguagem”, para que o diretor não ficasse maior do que a personagem.

A decisão se revelou acertada. Realizado pela produtora Latina Estúdio, com coprodução do Canal Brasil, o filme documenta (bem) a graça peculiar deste palhaço triste nascido com o nome de João Rubinato em 7 de agosto de 2010, como consta na certidão de nascimento exibida em cena do documentário.

Adoniran Barbosa em capa de álbum dos anos 1970 (Foto: Reprodução) Adoniran Barbosa em capa de álbum dos anos 1970 (Foto: Reprodução)

Adoniran Barbosa em capa de álbum dos anos 1970 (Foto: Reprodução)

O diretor Pedro Serrano aproveita bem a personagem multifacetada que põe em foco. Adoniran é retratado em tons realistas através de mix de imagens de arquivos (um acervo precioso que inclui números musicais e trechos de entrevistas do cantor) com depoimentos de quem conviveu com o artista. “Ele não era fácil”, sintetiza a filha Maria Helena Rubinato, ressaltando a personalidade cativante do pai.

O filme foca o humor por vezes ranzinza (mas quase sempre engraçado), as declarações contraditórias à mídia e aos amigos, o apego à bebida (e ao cigarro) e as inseguranças do artista (como na ocasião em que ele esperava Elis Regina no estúdio para gravar Tiro ao álvaro para o já mencionado disco de 1980) sem nunca deixar de exaltar o artista e tampouco sem pôr a obra em segundo plano.

As gravações feitas pelo cantor na década de 1930 – período em que Adoniran imitava o canto matricial do carioca Orlando Silva (1915 – 1978) em músicas feitas sem o linguajar popular dos sambas que dariam fama ao compositor a partir dos anos 1950 – soam surpreendentes até para quem conhece a história do artista. Quando a narrativa salta para a década de 1950, o roteiro encadeia trechos de filmes como Esquina da ilusão (1953) e Candinho (1954), nos quais Adoniran se aventurou como ator, ofício que o levou a atuar em novelas da TV Tupi ao longo dos anos 1970 (o documentário também exibe cena de Adoniran em Mulheres de areia, sucesso da Tupi em 1973).

Contudo, o foco principal do filme reside mesmo na música do compositor de sucessos como Saudosa maloca (1955) e Trem das onze (1964), samba que percorreu trilho intercontinental de sucesso, obtendo êxito retumbante no exterior, sobretudo na Itália, país onde foi ouvido na voz do cantor Riccardo Del Turco, autor da versão intitulada Figlio unico e apresentada em take risível. O filme mostra que, a despeito de o samba de Adoniran ser indissociável da cidade de São Paulo (SP), o Trem das onze também transitou com sucesso pelos Carnavais do Rio de Janeiro, vencendo até festival do gênero.

As imagens de arquivo são costuradas por falas emocionadas e/ou engraçadas de nomes como o produtor musical João Carlos Botezelli (o Pelão, devoto da obra de Adoniran) e Eduardo Gudin, além do já falecido Ernesto Paulelli (1914 – 2014), muso inspirador do personagem-título do Samba do Arnesto (1953).

Enfim, sem querer aparecer mais do que a rica personagem que documenta, o cineasta Pedro Serrano expõe toda a graça sui generis do palhaço triste João Rubinato, vulgo Adoniran Barbosa, em filme que prende a atenção e presta ótimo serviço à memória musical nacional. (Cotação: * * * *)